Mais de mil construções fazem parte da lista de imóveis
tombados e inventariados no centro de Porto Alegre. São testemunhas e
personagens dos caminhos que a cidade trilhou em seus 243 anos – e, por isso,
têm o valor arquitetônico, cultural e social preservado por lei. Muitas vezes,
no entanto, só por lei.
Basta um breve passeio pelas ruas centrais da Capital para
flagrar parte do passado em ruínas. Já sem telhado e com risco de desabamento,
casas e prédios históricos privados viraram depósitos de lixo e criadouros de
ratos e moscas. São imóveis que tentam resistir a processos judiciais de longa
data, ao desinteresse dos proprietários, à ineficiência do poder público na
fiscalização e aplicação das medidas punitivas e à falta de regulamentação de
uma lei municipal, criada em 2008, que trata do assunto.
Zero Hora percorreu seis ruas do Centro e verificou as
condições de 70 imóveis tombados ou inventariados. Destes, 15 foram encontrados
em mau estado de conservação – sendo que dez estavam totalmente abandonados.
Um dos imóveis conferidos ocupa o número 645 da Rua
Riachuelo. É um sobrado construído há mais de cem anos, aos moldes coloniais,
que pertenceu ao comendador João Batista Ferreira de Azevedo, importante
comerciante e um dos fundadores do Banco da Província. Tombado pelo município
desde 1980, o imóvel hoje consiste em uma fachada, escorada há alguns anos por
ação da prefeitura. Além de se tornar símbolo do descaso com o passado, a casa
virou motivo de queixa de moradores do entorno.
– Blocos de cimento caem na nossa área, e mosquitos invadem
os apartamentos. Sem contar que o que sobrou das paredes internas pode a
qualquer momento desabar sobre os moradores de rua que invadiram o espaço –
reclama o funcionário público Sérgio Brum, vizinho das ruínas há 11 anos.
Incomodado, o condomínio de Brum entrou na Justiça em busca
de solução. O mesmo já havia feito o Ministério Público (MP) do Estado quando,
em 1999, moveu uma ação pública contra os proprietários e a prefeitura, que se
torna corresponsável pela preservação de qualquer imóvel identificado como
patrimônio cultural.
– A prefeitura não aplicou multa e atendeu o que determinou
o MP. Foi lá e fez tapume, proteção, estabilização. Agora estamos vendo como
continuar. Temos que ter algo a oferecer. Não se pode apenas chegar para um
proprietário e dizer que a lei determina que ele preserve. É preciso enxergar
limites e buscar parcerias. A saída é uma equação entre o possível e o
desejado, o real e o imaginado – afirma Luiz Antônio Custódio, coordenador de
Memória Cultural da Secretaria Municipal da Cultura de Porto Alegre.
Ratos com o mesmo
tamanho dos gatos
Para Custódio, a melhor alternativa, em casos como esse, é
mesma que está sendo aplicada no antigo Cinema Astor, na esquina das avenidas
Cristóvão Colombo e Benjamin Constant: a prefeitura estudou o que seria
possível construir no terreno para viabilizar que uma construção contemporânea
pudesse preservar a fachada. A recuperação do Astor também deve servir de
exemplo para acordos com outros proprietários, acredita Custódio.
Enquanto isso não acontece, o abandono se repete também nas
esquinas da Riachuelo e Marechal Floriano Peixoto, onde está a Casa Azul. De
acordo com o advogado Edgar Granata, um dos proprietários, um incêndio condenou
parte da construção, e a prefeitura determinou a interdição do casarão. A
situação que se estende por mais de uma década foi ainda agravada, como
frequentemente acontece, por desentendimentos entre os inúmeros herdeiros. A
prefeitura afirma que deve recuperar a fachada da edificação, que é uma questão
de segurança, mas não vê a desapropriação do imóvel como alternativa.
– Não teríamos como adquirir todo tipo de imóvel que tem
esse problema. Por isso que a solução urbanística, de estudar o que pode ser
construído, me parece a mais viável. Ainda que, às vezes, emperre na questão
dos proprietários – justifica Custódio.
É o caso da Confeitaria Rocco, na esquina da Riachuelo com a
Dr. Flores, em que um dos três donos não tem interesse em vender o imóvel – que
já tem até proposta de compra. E o impasse segue, assim como no que um dia foi
a famosa boate Água na Boca e, meia quadra acima, no casario da Duque de
Caxias, próximo à Praça Conde de Porto Alegre. Neste último, as duas casas
agora servem de moradia para ratos "que têm o mesmo tamanho dos
gatos" que ali vivem, como dizem os comerciantes das redondezas. Uma das
residências pegou fogo anos atrás e nunca recebeu reparos. Do proprietário, o
pouco que se sabe é guardado em segredo.
– Ninguém quer se meter nessa bronca – afirma uma das
vizinhas.
A estratégia do
descuido
É comum, aliás, nos entornos de construções imponentes e
abandonadas como essas, se dizer em baixo tom que o donos "fazem é questão
de que tudo desabe de uma vez". Há quem diga que o descuido não passa de
uma estratégia para acelerar o processo de deterioração a um ponto irreversível
– aquele em que o patrimônio perde totalmente o seu valor cultural.
– Aí recolhe o que sobrou e libera o terreno pra uma garagem
ou prédio grande, né? – complementa a mulher, que não quis se identificar.
Interesses escusos podem existir, afirma Jorge Luís Stocker
Júnior, da Defender, associação civil que atua na defesa civil
do patrimônio cultural no Estado. A (ir)responsabilidade na manutenção dos
prédios, no entanto, vai além da esfera dos proprietários, defende Stocker.
– Muitos deles até têm interesse em preservar, mas enfrentam
burocracias na prefeitura, não têm recursos, nem acesso a ferramentas de
incentivo. No fim, os donos de bens históricos, que não podem ser
descaracterizados, ficam só com o ônus do processo de preservação.
Nova lei pode
viabilizar recursos para restauração
A lei municipal que trata do tombamento – e protege,
portanto, cerca de 40 imóveis no Centro – fornece mecanismos para que a
prefeitura incentive a manutenção dos patrimônios particulares e atue em casos
de abandono. Entre as ferramentas, estão a isenção do IPTU para proprietários e
a possibilidade de transferência do potencial construtivo dos terrenos. No rol
de medidas punitivas, estão notificações, multas, e até mesmo a desapropriação
dos imóveis – recursos raramente aplicados.
Só que a maior parte do patrimônio histórico do Centro
(1.037 imóveis, conforme a prefeitura) são casas e prédios inventariados. Estes
são protegidos por outra lei municipal, a Lei do Inventário, que prevê
praticamente os mesmos ônus e bônus aos proprietários da lei do tombamento. A
diferença é que, sete anos após terem sido publicadas, as regras ainda não
foram regulamentadas.
Quando forem, na expectativa da promotora Annelise
Steigleder, da Promotoria de Justiça de Defesa do Meio Ambiente de Porto
Alegre, grande parte da questão da preservação do patrimônio cultural privado
da Capital poderá ser resolvida a partir de um único artigo: o que trata da
transferência do potencial construtivo.
Funciona assim: o proprietário de um bem histórico faz um
estudo, de acordo com o Plano Diretor, do que seria possível construir naquele
terreno, caso ele não abrigasse um imóvel tombado ou inventariado. Ele
descobre, então, que tem um potencial construtivo de X metros quadrados,
distribuídos em X pavimentos. Como ele não pode fazer uso deste potencial no
próprio terreno, em função do tombamento/inventário, ele tem o direito de
vender parte do índice para um construtor. Este, por sua vez, adquire o direito
de exceder, em algum empreendimento, os limites de construção fixados pela
legislação municipal – pode construir mais área, respeitando a volumetria
(recuos e altura máxima).
– Com isso, o proprietário teria recursos para assegurar a
sustentabilidade do seu bem. Por isso da urgente necessidade da regulamentação
da lei. Do contrário, continuaremos apenas com os instrumentos de comando e
controle, que não garantem a restauração, só geram longos processos judiciais –
afirma a promotora.
Segundo a prefeitura, a lei tem um estudo de revisão pronto,
que será encaminhado à Câmara Municipal de Vereadores para aprovação. A
regulamentação, no entanto, não tem prazo para ocorrer.
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